terça-feira, 22 de abril de 2014

Quem pode, pode???

Além do conto, abaixo está disponível link para biografia de Arthur Azevedo. Leia, pois é sempre bom aprender:

De cima para baixo
Artur Azevedo

    Naquele dia o ministro chegou de mau humor ao seu gabinete, e imediatamente mandou chamar o diretor-geral da Secretaria.
    Este, como se movido fosse por uma pilha elétrica, estava, poucos instantes depois, em presença de Sua Excelência, que o recebeu com duas pedras na mão.
    — Estou furioso! — exclamou o conselheiro; — por sua causa passei por uma vergonha diante de Sua Majestade o Imperador
    — Por minha causa? — perguntou o diretor—geral, abrindo muito os olhos e batendo nos peitos.
    — 0 senhor mandou-me na pasta um decreto de nomeação sem o nome do funcionário nomeado!
    — Que me está dizendo, Excelentíssimo?...
    E o diretor-geral, que era tão passivo e humilde com os superiores, quão arrogante e autoritário com os subalternos, apanhou rapidamente no ar o decreto que o ministro lhe atirou, em risco de lhe bater na cara, e, depois de escanchar a luneta no nariz, confessou em voz sumida: 
    — É verdade! Passou-me! Não sei como isto foi...
    — É imperdoável esta falta de cuidado! Deveriam merecer-lhe um pouco mais de atenção os atos que têm de ser submetidos à assinatura de Sua Majestade, principalmente agora que, como sabe, está doente o seu oficial-de-gabinete!
    E, dando um murro sobre a mesa, o ministro prosseguiu:
    — Por sua causa esteve iminente uma crise ministerial: ouvi palavras tão desagradáveis proferidas pelos augustos lábios de Sua Majestade, que dei a minha demissão!...
    — 0h!...
    — Sua Majestade não o aceitou...
    — Naturalmente; fez Sua Majestade muito bem.
    — Não a aceitou porque me considera muito, e sabe que a um ministro ocupado como eu é fácil escapar um decreto mal copiado.
    — Peço mil perdões a Vossa Excelência — protestou o diretor-geral, terrivelmente impressionado pela palavra demissão. — 0 acúmulo de serviço fez com que me escapasse tão grave lacuna; mas afirmo a Vossa Excelência que de agora em diante hei de ter o maior cuidado em que se não reproduzam fatos desta natureza.
    0 ministro deu-lhe as costas e encolheu os ombros, dizendo: 
    — Bom! Mande reformar essa porcaria!
    0 diretor-geral saiu, fazendo muitas mesuras, e chegando no seu gabinete, mandou chamar o chefe da 3a seção, que o encontrou fulo de cólera.
    — Estou furioso! Por sua causa passei por uma vergonha diante do Sr. Ministro! — Por minha causa?
    — 0 senhor mandou-me na pasta um decreto sem o nome do funcionário nomeado!
    E atirou-lhe o papel, que caiu no chão.
    0 chefe da 3ª seção apanhou-o, atônito, e, depois de se certificar do erro, balbuciou: 
    — Queira Vossa Senhoria desculpar-me, Sr. Diretor... são coisas que acontecem... havia tanto serviço... e todo tão urgente!...
    — 0 Sr. Ministro ficou, e com razão, exasperado! Tratou-me com toda a consideração, com toda a afabilidade, mas notei que estava fora de si!
    — Não era caso para tanto.
    — Não era caso para tanto? Pois olhe, Sua Excelência disse-me que eu devia suspender o chefe de seção que me mandou isto na pasta!
     — Eu... Vossa Senhoria...
    — Não o suspendo; limito-me a fazer-lhe uma simples advertência, de acordo com o regulamento.
    — Eu... Vossa Senhoria.
    — Não me responda! Não faça a menor observação! Retire-se, e mande reformar essa porcaria!
     0 chefe da 3ª seção retirou-se confundido, e foi ter à mesa do amanuense que tão mal copiara o decreto:
    — Estou furioso, Sr. Godinho! Por sua causa passei por uma vergonha diante do Sr. diretor-geral!
    — Por minha causa?
    — 0 senhor é um empregado inepto, desidioso, desmazelado, incorrigível! Este decreto não tem o nome do funcionário nomeado!
    E atirou o papel, que bateu no peito do amanuense.
    — Eu devia propor a sua suspensão por 15 dias ou um mês: limito-me a repreendê-lo, na forma do regulamento! 0 que eu teria ouvido, se o Sr. diretor-geral me não tratasse com tanto respeito e consideração!
    — 0 expediente foi tanto, que não tive tempo de reler o que escrevi... 
    — Ainda o confessa!
    — Fiei-me em que o Sr. chefe passasse os olhos...
    — Cale-se!... Quem sabe se o senhor pretende ensinar-me quais sejam as minhas atribuições?!...
    — Não, senhor, e peço-lhe que me perdoe esta falta...
    — Cale-se, já lhe disse, e trate de reformar essa porcaria!...
    0 amanuense obedeceu.
    Acabado o serviço, tocou a campainha. Apareceu um contínuo.
    — Por sua causa passei por uma vergonha diante do chefe da seção! 
    — Por minha causa?
    — Sim, por sua causa! Se você ontem não tivesse levado tanto tempo a trazer-me o caderno de papel imperial que lhe pedi, não teria eu passado a limpo este decreto com tanta pressa que comi o nome do nomeado!
    — Foi porque...
    — Não se desculpe: você é um contínuo muito relaxado! Se o chefe não me considerasse tanto, eu estava suspenso, e a culpa seria sua! Retire-se!
    — Mas...
    — Retire-se, já lhe disse! E deve dar-se por muito feliz: eu poderia queixar-me de você!...
    0 contínuo saiu dali, e foi vingar-se num servente preto, que cochilava num corredor da Secretaria.
    — Estou furioso! Por sua causa passei pela vergonha de ser repreendido por um bigorrilhas!
    — Por minha causa?
    — Sim. Quando te mandei ontem buscar na portaria aquele caderno de papel imperial, por que te demoraste tanto?
   — Porque...
   — Cala a boca! Isto aqui é andar muito direitinho, entendes? — Porque, no dia em que eu me queixar de ti ao porteiro estás no olho da rua. Serventes não faltam!... 
    0 preto não redarguiu.

    0 pobre diabo não tinha ninguém abaixo de si, em quem pudesse desforrar-se da agressão do contínuo; entretanto, quando depois do jantar, sem vontade, no frege-moscas, entrou no pardieiro em que morava, deu um tremendo pontapé no seu cão.
    0 mísero animal, que vinha, alegre, dar-lhe as boas-vindas, grunhiu, grunhiu, grunhiu, e voltou a lamber -lhe humildemente os pés.
    0 cão pagou pelo servente, pelo contínuo, pelo amanuense, pelo chefe da seção, pelo diretor-geral e pelo ministro!...